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A etnografia de Cristiane Lasmar contempla o movimento de grupos indígenas em direção à cidade de São Gabriel da Cachoeira no Amazonas, em um percurso de transformação que a autora designa como a aproximação dos índios ao mundo dos brancos. Contudo, sua análise difere de outras interpretações sobre o “contato”. Isto se dá pela escolha metodológica da autora em entender este movimento da perspectiva da sociocosmologia nativa. Nesse sentido, a partir da estrutura social, do corpos mítico das populações indígenas da região a autora procura avançar em questões tais como de que maneira os indígenas concebem o “outro”, como se colocam nesta relação e sobre os problemas que dela decorre.

A diversidade de grupos indígenas da região, como os Tukano, Desana, tariana, não tem como conseqüência uma não identificação a partir da categoria pan-étnica ‘indio’ de modo segregacionista, visto que é utilizada por todos os grupos indígenas da região em oposição aos brancos. Segundo a autora, a bacia do Rio Uaupés que desemboca no Rio Negro, e daí a identificação da região, é vasta. Compreende parte do território brasileiro e colombiano com uma população de aproximadamente 9.300 indivíduos (Cablazar & Ricardo, 1998, p.7 apud, Lasmar, 2005, p.26) que se dividem em dezessete grupos étnicos: Tukano, Desana, Kubeo, Wanana, Tuyuka, Pira-tapuya, Miriti-tapuya, Arapaso, Karapanã, Bará, Siriano, Makuna, Tatuyo, Barasana, Taiwano, Tariana. Todos pertencentes à família lingüística tukano oriental, com exceção dos Tariana da família aruak, mas que na atualidade falam majoritariamente o tukano.

Esta pluraridade de grupos étnicos tem conseqüências na estrutura social do Alto Rio Negro, pelo fato do parentesco ser organizado a partir de casamentos exogâmicos. Ou seja, mesmo que internamente os índios se casem, existe em cada um dos grupos uma separação decorrente dos sibs. Deste modo o casamento preferencial é o de primos cruzados e após o casamento a regra de residência é a virilocalidade. Os casamentos dentro do mesmo sib desta forma são prescritos. As mulheres então casam-se e vão morar no sib do marido. É a partir desta passagem da mulher ao longo de sua vida entre um sib e outro que a autora toma o problema de sua pesquisa. De acordo com a estrutura social nativa, quanto mais distante for o casamento, melhor; daí decorre o interesse das mulheres pelos brancos, estas, por conseguinte, seriam os grandes agentes mediadores entre os dois mundos, por isto o enfoque particular na questão do gênero pela autora. De modo que no espectro das categorias indígenas, tem-se como parente próximo os pertencentes aos mesmos sib; depois o grupo étnico; posteriormente, o conjunto dos grupos que habitam o Alto Rio Negro, descendentes da viagem da cobra-canoa, onde cada qual possui seu atributo; outros índios e; por fim, diametralmente orientado no outro pólo, os brancos.

O contato com os brancos data de muito tempo e há registros das primeiras missões no Alto Rio Negro ainda em 1759, referência para este período são os estudos de Robin Wright. Não menos traumático foi o contato a esta época, em um período posterior. Após a este primeiro período missionário houve o avanço dos seringais na região no inicio do século XIX, acompanhando o ciclo da borracha. Neste período a mão de obra indígena passou a ser uma das principais fontes dos exploradores da região. Este momento vai perdendo seu rigor, quando cessado com a chegada de missionários salesianos que passaram a controlar as relações entre os índios e brancos nesta nova relação de contato. Retiraram os índios da condição de mão-de-obra nos seringais e postularam a conversão via educação através dos internatos. Neles os missionários além de divulgarem sua fé, ensinavam o português e ofícios como a carpintaria e a costura, o que possibilitou a mudança, posteriormente, de vários indígenas para as cidades próximas em busca de estudos. Muitos tornaram-se professores e com suas rendas começaram a fornecer os itens que os índios, na figura de seus familiares, viam-se cada vez mais interessados e que dependiam de dinheiro para obtenção. Como escola, medicamentos, vestuários entre outros. Isto fez com que os próprios pais se interessassem na educação fornecida pelos brancos de seus filhos. Tal situação perdurou nesta forma de relação com os salesianos entre os anos 1950 até 1970, sendo em 1988 o ultimo internato fechado.

Dado este contexto a autora divide seu livro na oposição que caracteriza a identificação e o uso das categorias de índio e branco na cidade de São Gabriel; isto a partir da oposição de vida em comunidade e a vida na cidade. A primeira parte do livro que conta com dois capítulos aborda esta primeira questão, sendo a segunda parte com três capítulos, a segunda.

Neste primeiro momento, portanto, a autora preocupa-se com as relações de identidade e alteridade das famílias indígenas antes da mudança para o contexto urbano.  No entanto o enfoque principal da autora é em alguns temas de gênero, como o papel da mulher no casamento e aliança matrimonial, visto que isto constitui um referencial simbólico constantemente mobilizado pelos índios que vivem na cidade. É nesta parte que a autora descreve a estrutura social destas comunidades com base nas monografias clássicas como as de Hugh-Jones. Segundo a autora:

A mitologia dos grupos do Uaupés tem como evento fundamental a viagem da grande cobra-canoa rio acima. Durante essa viagem, foram originados todos os grupos e fixados os seus territórios primordiais. Vinda do leste, do Lago de Leite, a cobra ancestral subiu o rio Negro, o Uaupés e, ao alcançar as cabeceiras, inverteu sua posição, de modo que a cabeça passou a estar voltada para o leste e a cauda para o Oeste. (As versões variam, como mostra a autora, de grupo para grupo). Em determinado momento, os ancestrais dos diversos grupos emergiram do corpo da cobra, um por um. Cada grupo recebeu uma língua, uma parafernália ritual, um complexo de bens simbólicos como nomes, mitos, rezas xamânicas, musicas e o direito de fabricar um determinado item de material especializado. Em resumo o que ocorreu durante esse episódio foi a transformação gradual da pré-humanidade em seres humanos com identidade social demarcada pelo pertencimento a um grupo exógamo e a subgrupos, referidos na literatura como sibs. Cada grupo exógamo já se vê, portanto, desde a origem, dividido internamente em segmentos, cujas relações se baseiam na hierarquia instituída a partir da ordem de nascimento de seus ancestrais míticos. As narrativas de origem dos sibs de um mesmo grupo exógamo podem ser vistas como versões localizadas da viagem da cobra em que emergiu a humanidade. (LASMAR, 2005, p.56)

Nesse sentido os grupos da parte Alta do Rio Negro são hierarquicamente superiores. Esta estrutura se reproduz no seio de uma família onde a prerrogativa do filho mais velho de herdar as tradições do sib é determinante em relação aos mais novos. Assim os “sibs da cabeça” e os “sibs da cauda” diferenciam-se quanto ao seu grau de identificação com o todo e não com relação às suas capacidades. Há a prevalência da parte agnática, pois a transferência do sib é prerrogativa masculina, já que a mulher, devido ao casamento, é sempre oriunda de um outro sib. A autora faz anotações sobre a distribuição espacial com relação à questão do gênero, considerando o fato das mulheres não poderem aproximar-se das flautas que são utilizadas em rituais regados a caxiri. O caxiri é uma bebida alcoólica fermentada de uso ritual, utilizada nas ocasiões de encontros entre os grupos. No entanto, a autora ressalta que a participação das mulheres nestes contextos se dá de outra forma, como um principio complementar, como no caso, do fato de serem elas que preparam a bebida para as ocasiões. Afastando-se assim de uma leitura apressado de uma relação desigual entre os sexos no ritual. Não obstante considere que essas diferenças são bastantes marcadas nestes grupos.

A associação das festas com o uso do caxiri reflete uma moralidade indígena com relação ao uso da bebida, segundo descrição da autora sobre a festa:

Homens e mulheres tornam-se mais expansivos em noite de festa, numa inversão bastatnte visível do padrão de moderação que regula o comportamento cotidiano. Mas nem tudo são flores em uma festa de caxiri: a mesma comoção que faz ecoar em bom som o orgulho das mulheres  que têm, pode extravasar ressentimento há muito recônditos, ou transformá-los em fantasias de desrespeito e traição. Cada caxiri é uma reedição de conflitos eclipsados cotidianamente pelo ideal e restrição. Cada festa fornece novo contexto para catarse emocional: “ the drink party roils up feelings to the point where what has been latent erupts forcefully into the open”. Na euphoria de uma festa, todos embriagados, rugas de ciume entre marido e mulher para a troca de denuncias e violencias fisicas. Contendas entre parentes  ou afins se desenvolvem com base em acusações de vários tipos: adultério, sovinice e outras formas de comportamento social inadequado. Hoje, importantes fontes de conflito familiar são o alcoolismo de jovens e adultos e a atividade seuxal das moças. As mães solteiras costumam ser vitimas de hostilidades durante as festas, em geral por parte de suas próprias famílias. (LASMAR, 2005, p.82)

Com efeito, o principal aspecto ressaltado pela autora com relação à vida em comunidade que caracterizaria os índios que não migraram para a cidade, é a experiência comunitária como um valor, denotada no título de seu capitulo: “lá se vive como irmãos”. O capítulo subseqüente dessa primeira parte descreve as relações de gênero dentro da comunidade destacando o papel mediador da mulher e sua posição de permanentemente envolta na questão de se fazer parente a partir da consubstancialidade, reproduzindo um ambiente de familiaridade que produz a consaguinidade. Ou seja, a despeito de serem provenientes de outro sib, à medida que vão convivendo com a parte agnática de seu marido, estas vão passando da categoria de afim para a de consangüíneo. Contudo, nunca finalizando o processo, que aparece mais como uma potência do que como efetivação. Este exemplo é dado etnograficamente pela autora ao referenciar as cantigas de mulheres que melancolicamente se dizem “não estar no lugar certo”. (LASMAR, 2005, p.132)

Outro ponto que a autora chama atenção é o fato de a mulher adquirir, paulatinamente, sua independência a partir do momento que consegue sua própria roça de mandioca, livrando-se da dependência da sogra. Este processo demonstra também a rígida divisão sexual dos trabalhos em que a produção dos víveres na roça é prerrogativa feminina, ao passo que aos homens cabe a caça e a pesca. Contemporaneamente os homens vêm cada vez mais ajudando suas esposas, entretanto nunca com relação às tarefas domésticas, como cozinhar. Trabalhar nas roças de mandioca relação define parte das escolhas dos pais de colocarem as jovens na escola ou não. Quando esta segundo seus pais “não leva jeito” para os estudos, logo tratam de casá-la e de ensiná-las a trabalhar na roça para garantir o sustento de sua futura família, caso contrário, o casamento estaria amplamente comprometido.

É nesta economia da aliança que se insere as relações estabelecidas entre os índios e os brancos em São Gabriel da Cachoeira. As mulheres indígenas dão preferência a casamentos com os brancos. A autora se preocupa em considerar esta preferência para além de interesse individualistas (embora este interesse seja um dos motivos com os quais os próprios indígenas fazem oposição entre a vida na cidade e a vida nas aldeias) e econômicos, ressaltando o papel que a preferência pelo casamento distante desempenha na própria cosmologia indígena.

A autora faz ampla descrição da cidade separando os bairros indígenas e como a distribuição espacial enseja categorias para as leituras dos índios sobre os brancos e os próprios índios. O bairro da Praia é tradicionalmente um bairro indígena que contrasta com o bairro de Dabaru. Este último é um bairro novo fruto da distribuição de lotes para indígenas recém chegados. Os habitantes do bairro da Praia, mais antigo, entendem o bairro de Dabaru como mais indígena do que o da Praia onde, já estão habituados aos costumes brancos. Em oposição a estes dois, destacam-se os bairros da Fortaleza e o Centro, de população majoritariamente branca do ponto de vista indígena. A maioria dos moradores desses bairros são oficiais de baixa patente do Exército, potenciais maridos para as indígenas; migrantes nordestino remanescentes do ciclo da borracha; bem como pesquisadores e missionários, sendo estes mais distantes da possibilidade de casamento das indígenas, tendo em vista o caráter peremptório de suas passagens na cidade. A autora ressalta certo estigma dentro das próprias indígenas da cidade com relação as que estão chegando. Esta separação se dá nos clubes da cidade, bem como na relação das moradoras do bairro da Praia com os moradores do bairro de Dabaru. Segundo as nativas, os homens indígenas, não são bom de “conversa” como os brancos além de beberem muito, o que faz com que não aspirem ao casamento com estes. Isto cria segundo a autora um desnível na economia de casamentos na cidade pelo qual os índios tendem a ficar sem mulheres.

Afora esta situação a autora mostra a relação entre “ser bom de conversa” associado ao trato do fala, como no caso dos usos xamanicos e a relação com o conhecimento. A autora vai na mitologia  para explicar a diferença com relação a este quesito. Menciona ainda a leitura nativa da mestiçagem a partir da categoria de índios misturado. Segundo a autora:

Na cosmologia dos grupos do Uaupés, os brancos são representados como membros de uma categoria genérica de seres humanos cujos atributos se distinguem essencialmente daqueles a partir dos quais os índios se definem a si próprios. A origem dessa diferença estaria no fato de os índios e brancos não compartilharem o mesmo ponto de vista sobre a vida social. Enquanto aos primeiros agrada viver em comunidades ribeirinhas, fazendo festas e cuidando dos parentes, os últimos habitam a cidade, são agressivos, egoístas e não valorizam o parentesco. A forma indígena de “estar no mundo” aparece, portanto, revestida de uma qualidade moral específica – a capacidade de viver em comunidade, levando um tipo de existência cujo sustentáculo é a valorização da partilha e da convivência, e no qual o jogo está, sobretudo, no bem-estar coletivo. (LASMAR, 2005, p.216)

Esta diferença é explicada miticamente como uma escolha dos próprios índios quando a canoa de fermentação ao alcançar as cachoeiras de Ipanoré, o Deus Criador, dispôs no chão uma série de objetos para que os ancestrais escolhessem. O ancestral branco escolheu a espingarda e a mercadoria, ao passo que os índios optaram por outros objetos. Isto explicaria a diferença entre um ethos moderado e pacífico do índio em oposição ao destempero e a guerra do branco.

Para acessar as diferentes perspectivas de mundo a autora recorre ao perspectivismo ameríndio a partir das histórias de waí’masa. O mundo do qual originou toda humanidade dos homens-peixes. Esta relação com o mundo inferior é o que media a maioria das práticas xamânicas e justifica várias prescrições indígenas na explicação da doença e da morte sob influência destes. Ainda com relação à comunicação destes diferentes mundos, capacidade dos xamãs, sobressai uma teoria do conhecimento. Enquanto no caso indígena as mulheres não tem acesso a essa capacidade de acessar o conhecimento xamanístico, pois passa de pai para filho dentro do sib, o conhecimento do branco pode ser obtido na escola. A conseqüência disto é relatada em uma experiência etnográfica sobre o método pedagógico utilizado pela autora ao lecionar um curso para professores indígenas. Segundo ela, ao perguntar o que os índios achavam sobre suas questões, estes relataram insatisfação, pois interessavam a eles o conhecimento do branco com relação a determinados aspectos. É nesta direção que há o reconhecimento de um aspecto positivo da prática dos missionários religiosos ao se proporem passar o conhecimento branco para os indígenas.

Como toda boa etnografia o trabalho de resenha se mostra complicado na seleção dos variados dados que a mesma fornece. Mas, por fim, a autora retoma seu tema destacando o papel das mulheres na cidade como transmissoras dos bens que obtêm a partir de seus casamentos para os familiares, ainda dando continuidade ao modo de vida indígena. É em suas casas que recebem seus parentes que vêm tentar outra vida na cidade e esta situação é retratada na fala de um de seus maridos ao dizer que quando se casa com uma índia é o mesmo que se casar com a sua família toda. Nesse sentido, vê-se o papel da aliança como o meio pela qual se efetiva a troca entre os dois mundos, sentido orientado dentro dos interesses da perspectiva do modo de vida indígena. Ou seja, a maneira como escolheram sua maneira de se transformar, objetivo perscrutado pela autora durante todo o seu livro.

 

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