RICKLI, João. Negotiating Otherness in the Dutch Protestant World: Missionary and Diaconal Encounters between the Protestant Church in the Netherlands and Brazilian Organisations,314p. Vu University Amsterdam, 2010.
Negotiating Otherness in the Dutch Protestant World tem como proposta uma etnografia sobre o papel dos missionários na construção do mundo protestante holandês. A pergunta principal da pesquisa é como o “outro” é projetado por diferentes atores constituindo a rede do mundo protestante holandês (como os programas missionários, os ZWO, as igrejas locais pelo interior da Holanda, e na grande sede que reúne várias denominações protestantes da Holanda – PLD – que se reuniram em torno de um conselho denominado PKN). Como estes equacionam e qual é o repertório simbólico capaz de mobilizar uma rede de pessoas, símbolos, e coisas em torno de uma igreja constituída a partir da ação missionária?
A análise do autor é feita, primeiramente, do ponto de vista institucional. Leva em conta, tanto o tempo como o espaço a partir da descrição da sede da igreja na Holanda. A partir disso o autor preocupa-se em descrever alguns atores da rede, como a PKN, KiA e ICCo Alliance. A abordagem utilizada é tributária da action-network theory de Bruno Latour.
No primeiro capítulo a investigação tem como foco, portanto, o PLD, espaço físico responsável pelo amalgama destes três grupos, descritos em por menor no restante do capítulo. Com relação ao espaço, o autor aponta que trata-se de uma categoria que sempre permeia o restante de sua análise, pois é um importante aspecto da cosmologia protestante holandesa. Tanto que o autor salienta a relação do PLD como sede da igreja protestante holandesa localizar-se no coração da Holanda, em Utretch. A distribuição interna dos órgãos da igreja de acordo com sua função na imagem que fazem do mundo e de seu papel a partir de um panorama, também indicam esta relação significativa com o espaço. Panorama seria outro conceito tomado de Latour, que faz referência justamente a projetos, visão de uma instituição capaz de organizar suas próprias organizações internas.
Após a análise do espaço físico da instituição, reiterando a importância das coordenadas geográficas, o autor enfatiza uma relação semelhante a que a Lévi-Strauss fez com as organizações dualistas: trata-se de observar a complementaridade entre lógica classificatória e distribuição espacial, sabemos que nem sempre necessária. No caso da PLD, segundo o autor, isto se verifica pelo fato de que a primeira organização – PKN – (reunião das principais igrejas protestantes holandesas dentro da sede) localizar-se na porção oeste do edifício. A segunda – KiA – (que é a igreja em ação representada pelos missionários) situa-se na porção leste, juntamente com a ICCO Alliance, que corresponde à participação do governo na instituição a partir da noção de development cooperation. Esta configuração estabelece o que o autor definiu como “negotiating otherness”, relação do “eu” que neste caso aparece associado ao oeste e o leste onde é possível vislumbrar a projeção do “outro”. Outra oposição representativa da relação de alteridade construída pelos protestantes holandeses associa esta divisão Oeste-Leste com eixo Norte Sul. O exemplo fornecido pelo autor são as referencias nativas à KiA como “a window for the south” e que, como ressaltado, está a leste no prédio do PLD e onde se localizam os missionários.
Prosseguindo sua etnografia o autor destaca que o “outro”, para os protestantes, também assume importância em todo o aparato de decoração da sede, com ênfase para o que o autor chama de “ethnic religion art” acompanhada de mapas em quase todos os lugares.
Analisando a literatura pertinente ao protestantismo na Holanda, o autor ressalta um processo (sow together in the way) de reunião recente dos diversos grupos protestantes holandeses em torno do PKN, sediado no PLD. Esta fusão fora decorrente de transformações da sociedade holandesa em um processo de secularização avidamente discutido na bibliografia correspondente ao tema. A tese do autor é a de que a construção de um projeto missionário e diaconal surgiu como um amálgama desta fusão, a despeito da união das igrejas justificada pelo declínio de fiéis. Este projeto teve como um de seus principais momentos o ano de 1994 com a criação da KiA e foi ‘concretizado’, não sem grandes traumas, com a inserção da perspectiva estatal com o ICCO Alliance em 2004. O movimento missionário seria, portanto, uma grande peça para o entendimento das teses que explicariam o processo, problema debatido na literatura e que o autor acompanhou durante sua pesquisa de campo.
No capítulo III a análise do autor centra-se nos repertórios simbólicos de construção do “outro” problematizando a relação entre igreja e estado em uma descrição a partir do caso da ICCO Alliance. Para tanto, o autor utilizou a analise de alguns documentos, embora chame atenção que não se preocupa em estabelecer uma analise histórica que leve em conta a cronologia, mas sim seu problema principal, o da construção do ‘outro’ nestes documentos. O autor delimita, assim, sua análise para a investigação das referencias sobre o “outro” a partir da prática missionária focada no caso brasileiro, especialmente a EIR (Igreja Reformada). Os pontos ressaltados pelo autor na análise dos documentos foram que no relatório da GKN, missionários em viagem no ano de 1959, destacou-se um Brasil como um país onde prevalece o sincretismo, o paganismo, o espiritismo e a secularização, embora este fosse um grande terreno para a promoção da fé cristã e, ainda segundo análise das fontes, o autor relata que, para aqueles missionários no Brasil, os brasileiros só são “católicos no nome” possuindo uma fé distante. Desta forma conclui que na descrição dos missionários tudo justificava a necessidade da religião protestante no Brasil e assim a própria ação missionária. Um curioso dado que o autor nos mostra é como os missionários se referiram ao sincretismo: ao lerem “Hotel Brahma” associaram este no documento à religiosidade asiática sem perceberem que o nome dizia respeito a uma popular cerveja do país de mesmo nome.
O outro documento analisado faz referencia a questão do desenvolvimento, portanto, o documento é mais de caráter político do que religioso. Data de 1980 mencionando o contexto político vivido durante a redemocratização, a influência da teologia da libertação que tem como resultado uma resignificação dos movimentos missionários. Desta forma pela etnografia do autor tem-se margem para a discussão de várias possibilidades de movimentos missionários, dentro do próprio mundo protestante variando no tempo. O documento também menciona outras discussões que tomavam a América Latina como a questão da reforma agrária, bem como um neo-marxismo alicerçado na teoria da dependência. O ponto destacado na leitura do documento pelo autor é que não é a bíblia que se informa uma leitura da América latina, mas sim a América latina que informa a leitura da bíblia na prática destes missionários. Como no caso do novo testamento interpretado não apenas como o salvamento individual, mas diante destas questões apontadas anteriormente como “the filfilment of the (social) liberation message of the Old Testament” (Rickli, 2010, p. 127). No documento da ZAO, organização àquela época correspondente à ICCO Allience na mediação das políticas de estado para o desenvolvimento e a igreja, a falta de infra-estrutura em saúde e educação seria uma grande oportunidade para a ação missionária.
Em seguida a análise do autor centra-se na observação participante. O autor ressalta as contradições internas entre os grupos com relação ao missionarismo, no caso diferentes visões sobre missão, dando exemplo da relação entre a IER (Igreja Protestante Reformada) como o centro e a prática missionária a partir de seu contato com o outro como as vezes crítica da instituição central. Nessa mediação, destaca também o papel dos imigrantes, no caso os do Paraná observados pelo pesquisador. Este processo é o que o autor denomina de negociação de visões sobre o “outro” dentro de uma mesma comunidade e que a etnografia pretender fazer perceber. Nesse sentido o autor conclui que as trocas realizadas nestas redes vão para mais do que repertórios simbólicos, mas relações de parentesco (embora não tenha visto exemplos na etnografia do autor) e econômicas.
No capítulo seguinte o autor centra-se na analise da rotina de diferentes encontros dos missionários para ressaltar neles a presença da gramática apresentada anteriormente. Aponta estas interações como a princípio “caóticas”. Sua etnografia pretende demonstrar os constantes esforços do grupo para dar ordem, seguindo preceitos teóricos de (Law, 1994) e Ingold (1993).
Ainda no Capitulo V, no que chamarei da “obsessão pelo todo” do autor, este sai das instituições principais para observar as pequenas comunidades protestantes na Holanda. Segundo o autor as igrejas na Holanda reproduzem localmente a lógica descrita pelo mesmo na perspectiva macro da instituição sede e duas articulações no restante do mundo. Desta forma procura mostrar os possíveis pontos de articulações. Estas articulações são demonstradas pelo autor a partir da eleição de alguns temas como o dinheiro, mercado e a dádiva, considerando uma breve revisão da literatura para o problema. Assim chama atenção para a maneira nativa de se conceber a relação com o dinheiro. Neste caso para o autor o dinheiro não tem só seu valor troca sugere que: “that the physical and objective form that the monetary donation takes in church, campaigns or bank transfers has significant effects on the creation of the missionary network.” (Rickli, 2010, p. 218)
Complementando o capítulo, o autor destaca a importância da vivencia do outro nas praticas cotidianas da comunidade apontando como um dos caminhos de se atingir o transcendental, que estaria na possibilidade de viver o “there” sendo a demonstração da graça de levar a fé ao outro. Assim a evocação dos missionários em campo e continuamente feita nas bases da igreja na Holanda é uma experiência ritualmente vivida por seus fiéis.
Por fim, ainda no repertório da geografia como organizativo da experiência tanto do PKN como da KiA, o autor fecha seu livro com a análise de como este repertório localiza o mundo protestante em perspectiva global. Utilizando Tim Ingold e Appadurai o autor apresenta a relação do mundo protestante holandês como constituído a partir da necessidade das fronteiras, onde as missões têm papel fundamental e idéias como a de globalidade, diferenças culturais tornam-se a força motriz do que ele chamou de mundo protestante holandês.
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